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O fim do (Un)Doing Business e o direito imobiliário

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*Por: Bianca Castellar de Faria, titular do 1 Registro de Imóveis de Joinville (SC) e vice-presidente do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR) e Kelly Durazzo, presidente da Comissão de Loteamentos do IBRADIM e Diretora de Regularização Fundiária Urbana (REURB).

O Banco Mundial anunciou recentemente o fim do relatório Doing Business, realizado anualmente desde 2002. Após anos provocando polêmicas sobre critérios que prejudicavam o país e críticas sobre o ambiente de negócios no Brasil que acabaram impulsionando mudanças, o relatório não deve mais ser produzido. Se por um lado os critérios realmente não eram os mais justos, não há como negar que o Doing Business fez muito pela melhoria do ambiente de negócios no país, especialmente na área imobiliária.

A notícia sobre o encerramento do ranking veio em um comunicado do Banco Mundial admitindo que após auditorias e investigações internas foram encontrados problemas, inclusive com suspeitas éticas sobre ex-diretores, nos relatórios de 2018 e 2020, que poderiam ter sofrido manipulações de dados para melhorar artificialmente a classificação da China.

A descontinuidade do relatório não chega a ser uma surpresa, uma vez que o próprio Banco Mundial havia suspendido sua produção no ano passado. Mas também não deixa de ter um grande impacto, uma vez que se tratava de uma das principais publicações econômicas de alcance mundial, avaliando os países em várias áreas para medir a facilidade de se fazer negócios em determinada localidade.

Sua divulgação refletia em grandes debates sobre os problemas que levaram a um desempenho ruim e que medidas poderiam adotadas para melhorar a posição do país no ranking. No Brasil, por exemplo, o Governo Federal chegou até mesmo a editar a “MP Doing Business”, que posteriormente foi aprovada pelo Congresso Nacional com medidas para melhorar o ambiente de negócios.

“Seria inviável, num único artigo, avaliar os impactos do Doing Business em todos os setores da economia brasileira. Mas focando na área do direito imobiliário, o relatório sem dúvida alguma tinha defeitos que prejudicavam a classificação brasileira no ranking, ao mesmo tempo em que gerou um impulso significativo rumo à modernização e à desburocratização das negociações imobiliárias”, destaca Bianca Castellar de Faria, titular do 1 Registro de Imóveis de Joinville (SC) e vice-presidente do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR).

Muito se tem comentado na imprensa mundial sobre o pretenso beneficiamento à China na produção do relatório. Porém, é inegável que os critérios adotados pelo Banco Mundial davam um grande peso aos procedimentos formais obrigatórios, desconsiderando a prática de negócios no dia-a-dia, o que artificialmente acabava por beneficiar os países anglo-saxões que adotam a common law, onde muitas vezes os costumes não estão sacramentados em leis como nos países que seguem a civil law, como o Brasil.

Por mais que a metodologia do Doing Business não levasse em consideração apenas requisitos previstos em lei, mas também a prática do mercado, pela análise comparativa do “registro de propriedade” brasileiro com o norte-americano, ficavam evidentes as fragilidades do relatório.

Uma delas era a ampla margem de subjetividade na coleta e na análise de informações, o que denominamos de metodologia “porta aberta”. Exemplo disso era o relatório apontar quatorze diferentes procedimentos registrais imobiliários no Brasil, contra apenas quatro nos Estados Unidos, quando se sabe que a fase do due diligence norte-americano é infindável, na medida em que o sistema de registro (de documentos e não de direitos) não conta com a concentração dos gravames na certidão do imóvel, como ocorre no Brasil.

Outro ponto a ser objeto de reflexão e de ajuste é a cultura do “dois pesos e duas medidas”. Tanto para a redação do contrato (deed) quanto para o registro do título perante o Registro de Imóveis norte-americano, o relatório computava, para cada um dos procedimentos, somente um dia, com a justificativa de que os efeitos do registro retroagem à data do protocolo. No Brasil, temos essa regra de retroação dos efeitos prevista no art. 1.246 do Código Civil e, não obstante, o prazo computado foi de 15 dias.

E um terceiro aspecto que gerava uma inconsistência significativa na classificação global era a omissão do procedimento de contratação de advogado para a operação imobiliária, o que, na metade dos estados federados, é, inclusive, obrigatório e não apenas recomendável.

“Se esses critérios prejudicavam o Brasil é inegável também os avanços que foram conquistados pelo setor imobiliário nos últimos anos no país impulsionado justamente pelo desejo de melhorar seu desempenho no ranking do Banco Mundial’, avalia Kelly Durazzo, presidente da Comissão de Loteamentos do IBRADIM e Diretora de Regularização Fundiária Urbana (REURB).

Foram graças às críticas resultantes do Doing Business sobre a burocracia, morosidade e alto custo das transações imobiliárias no país que levaram todo o setor a se unir em iniciativas para modernizar essas negociações. Vários atores do governo e iniciativa privada, dentre eles Associação dos Registros de Imóveis do país, entidades de classe empresariais, cartórios e advogados, discutiram que melhorias poderiam ser adotadas.

Assim surgiu o Sistema de Registro de Imóveis do Brasil, no final do ano de 2019, responsável pelo site Registro de Imóveis, que permite que uma série de burocracias necessárias para a compra de um imóvel sejam cumpridas online. Antes eram necessárias 14 certidões espalhadas em vários sites para a consulta do vendedor de um imóvel, o que muitas vezes exigia a contratação de um despachante. Atualmente é possível obter online estas certidões, no “guichê de certidões”, sem qualquer custo.

Ainda, a fim de atender ao Doing Business criou-se o “Mecanismo de Reclamação”- um canal direto entre o apresentante do título e o Oficial do Cartório de Registro de Imóveis. O serviço é gratuito e simples. Você preenche um formulário no site, com os dados do seu protocolo e coloca o motivo que não concorda, por exemplo, com a exigência feita para o registro do seu título. Essa reclamação chega direto ao email do Oficial do Registro de Imóveis, em qualquer um dos 3.600 cartórios espalhados pelo Brasil, que tem prazo de até 5 dias para resposta.

Não menos importante, foi criado o portal estatístico registral. A disponibilização de informações como a quantidade de transações imobiliárias está entre as melhores práticas institucionais de transparências dos países, e era um dos indicadores para o Doing Business no quesito qualidade de administração fundiária (quality of land administration). Por conta dele, hoje temos como avaliar por exemplo, que no Estado de São Paulo, nos 12 meses considerados entre julho de 2020 e junho de 2021, tivemos um total de 1.095.469 transações imobiliárias, das quais 774.540 referentes à venda e compra. Ainda, temos como avaliar a quantidade de registros realizados no estado pelo Registros de Imóveis, além do tipo de imóvel, se apartamento, casa, fazenda, salas comerciais, dentre outros.

Mesmo com os erros apresentados no relatório, não podemos deixar de agradecer aos avanços gerados no mercado imobiliário e ao empenho dos atores desta evolução. Aguardamos pelas correções organizacionais e metodológicas do relatório e pelo retorno do Doing Business.